Fonte:© Humberto Reis / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2006). Todos os direitos reservados
Excerto (*) do longo poema K3, publicado em livro, pelo nosso camarada Nuno Dempster (**). Capa do livro, reproduzida em cima.
(...) Não encontrar ninguém
endurece-me a vista,
é um sinal de alarme
que acorda o cérebro
e ilumina o lugar onde se arquivam
os ficheiros secretos,
até que no poema eu tente
a redenção,
ou o vírus da morte
vá destruindo as células
e não haja memória.
Talvez porque os ficheiros
se mostrem
com todo o seu espólio irrevogável,
eu tenha descoberto
tristeza semelhante
no cemitério nazi de La Cambe,
tantos anos passados sobre o dia D:
uma mulher sozinha, de joelhos,
rezava no vazio, vasto campo
de lápides deitadas entre a relva
com nomes de ninguém
que vi gravados, data a data,
inúmeros
com dezoito anos e um com dezassete,
vencidos por quem foi vencido,
como é uso passar-se
com inocentes mandados para a morte,
para aquele fornilho
que ergeu como um vulcão a GMC,
velha da Grande Guerra,
eram quinze soldados
e o capitão
arrancado a um liceu,
e os soldados, a cerros e vielas
de cidades decrépitas,
todos subiram no ar,
os corpos de lava acesa,
e caíram no meu peito, recordo
o fragor que deixaram
e que ficou guardado,
para que hoje o livrasse,
entre o estupor das caras e o vaivém
dos helicópteros,
as macas e o pousar das moscas
que sorviam o sangue
e, por cima dos gemidos,
aquele rouquejar:
"Água, água, traz-me água",
era a sede final das veias secas,
e alguns de nós acorriam com cantis,
sem escutar mais nada,
do que a voz dos pulmões arruinados,
na insegurança do ar que respirávamos,
as nuvens de mosquitos em redor,
e o cheiro das acácias e explosivos
vomitados de angústia,
éramos todos órfãos:
Senhor, dizei uma só palavra
e a minha vida será salva,
e o senhor não dizia nada,
e todos insistiam em crer nele,
um talismã que trazem ao peito,
e que segura o mundo,
com as suas fronteiras proibidas,
embora não a morte,
a morte constitui-se
em limite vital a quem maneja
os deuses tripartidos, e os singelos
como é hoje a Senhora de Fátima,
com os três pastorinhos de alumínio
à entrada do barco,
que de nada serviram aos que foram cuspidos
em sangue incandescente
e que depois caíram entre fumo e pó,
"Capitão, meu capitão, não nos deixes sós",
ouvi no poema alguém.
Djariato não é mais a princesa
e chora com as outras raparigas negras
quando nos vê passar,
e os velhos respeitados têm um ar grave
como se fossem áugures no fim da validade. (...)
In: Nuno Dempster - K3. Lisboa: & etc. 2011, pp. 36-39 (Reproduzido com a devida vénia. O livro está disponível nas livrarias. Preço de capa: 12 €)
_______________
Notas do editor:
(*) Último poste desta série > 1 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8978: Blogpoesia (166): Azar... (Manuel Maia)
(i) nasceu em São Miguel, Açores (donde é originária a família paterna, enquanto a família materna é de Amarante)
(ii) mora em Viseu;
(iii) É engenheiro técnico agrícola (trabalhou em cooperativas, é hoje empresário);
(iv) tem três livros de poesia publicados: Londres, Dispersão, K3;
(v) é um dos nossos quatro poetas (juntamente com o Cristovão de Aguiar, o José Brás o Manuel Bastos) que estão representados na Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial;
(vi) pertence à nossa Tabanca Grande desde 9/2/2011.
O Nuno Dempster foi Fur Mil SAM, ou seja, vaguemestre, da CCAÇ 1792 (1967/69), a companhia dos lenços azuis, que andou, pela região do Oio, por Farim e Saliquinhedim/K3 [, "durante seis meses, ainda o aquartelamento era semi-subterrâneo",] mas também pela região de Tombali (Mampatá, Colibuía e Aldeia Formosa)... Pertenceu ao BCAÇ 1933 (Nova Lamego, Bissau, S. Domingos).
A CCAÇ 1792 teve 3 comandantes:
- Cap Mil Art Antóno Manuel Conceição Henriques (que ficaria sem as pernas numa mina A/C);
- Cap Art Ricardo António Tavares Antunes Rei,
- Cap Inf Rui Manuel Gomes Mendonça.
A companhia foi mobilizada pelo RI 15, tendo partido para a Guiné em 28 de Outubro de 1967 e regressado à Metrópole em 20/8/1969.
Sobre estes comandantes, o Nuno Demspster escreveu o seguinte, em mails que trocámos em tempos:
(...) Recordei, no link que enviaste, o capitão Rei, de carreira, que teve a ideia dos lenços e que substituiu o capitão miliciano, cujo nome já não recordo, um homem lúcido, vítima de um fornilho, na estrada de Farim, uma das passagens mais intensas do poema [, Cap Mil Art António Manuel Conceição Henriques]. Isso sucedeu dentro dos seis primeiros meses do início, quando estávamos no K3. Até sairmos de lá, o aquartelamento ficou entregue ao alferes miliciano, segundo comandante, bem como em Mampatá e Colibuia, penso. O Cap [Art Ricardo António Tavares Antunes] Rei chegou já no tempo de Quebo. (...)